Como financiar os investimentos para a universalização do saneamento no Brasil?
Os investimentos em saneamento no Brasil, embora tenham se elevado a partir de 2009, ainda não chegam à metade do necessário para atingir a universalização dos serviços até 2033, como previsto no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Além disso, os recursos investidos no setor são concentrados geograficamente e pouco alavancados, ou seja, contam com baixa participação de capital de terceiros.
Como um serviço que traz inúmeros benefícios para a sociedade, mas necessita de investimentos significativos e com longo prazo de maturação, o saneamento precisa de fontes de recursos adequadas a essas características.
Evolução dos investimentos em saneamento nos últimos anos
Para superar o déficit nacional em saneamento, o Plansab estimou que até 2033 seriam necessários investimentos de R$ 142 bilhões em água e R$ 215 bilhões em esgoto, uma média de R$ 27,6 bilhões por ano (a preços de 2019). Mas, como mostra o gráfico a seguir, os valores investidos no período de 2007 a 2019 representam menos da metade dessa necessidade, ficando, em média, no patamar de R$ 13 bilhões por ano.
Investimentos em saneamento (água e esgoto) no Brasil, de 2007 a 2019 (R$ bilhões, valores de 2019)
Fonte: Elaboração própria com base em Snis 2019.
O quadro fica ainda mais grave ao se comparar a participação das diferentes regiões do país nos investimentos e sua participação no déficit de serviços de saneamento. Essa análise mostra que os investimentos nos últimos anos estão concentrados principalmente nas regiões Sul e Sudeste, onde os níveis de atendimento da população por serviços de água e esgoto já são mais elevados.
Uma explicação para esse cenário está na heterogeneidade das capacidades econômico-financeira, técnica e institucional do principal tipo de prestador de serviços de saneamento no país, as Companhias Estaduais de Saneamentos (Cesbs), responsáveis pelo atendimento de quase 70% da população brasileira, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) de 2019. Essa proporção será reduzida em breve pelas concessões da Casal, em Alagoas, e de parte da área de abrangência da Cedae, no estado do Rio de Janeiro, ocorridas em 2020 e 2021, respectivamente.
Entre as 26 Cesbs existentes no país, há desde empresas que dependem de recursos de seus estados controladores para despesas de custeio até companhias que acessam recursos de financiamento nos mercados privado e público, incluindo algumas de capital aberto. A capacidade de investimento das companhias, portanto, varia bastante de acordo com as suas possibilidades de acessar diferentes fontes de recurso.
Outros fatores se relacionam ao desenvolvimento socioeconômico das áreas de atuação das companhias, envolvendo a capacidade de pagamento da população, o nível de governança da(s) entidade(s) regulatória(s) atuantes, a qualificação dos profissionais do setor e o comprometimento do ente público controlador com a melhoria dos serviços de saneamento.
Nesse contexto, há duas frentes de trabalho importantes para mudar a situação do setor: (i) manter e/ou elevar os investimentos dos prestadores que já têm capacidade de elaborar e implementar projetos financiados com recursos próprios e onerosos; e (ii) trazer prestadores capacitados para atuar nas localidades em que o atual prestador não tem essa capacidade e não consegue acessar esses recursos, realizando investimentos muito aquém do necessário.
As fontes de financiamento do saneamento e suas características
Atualmente, os recursos onerosos disponíveis para o investimento em saneamento provêm principalmente das fontes citadas a seguir.
Bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal (CEF), o BNDES e o Banco do Nordeste (BNB)
Os bancos públicos federais, com destaque para Caixa e BNDES, são os principais financiadores dos investimentos em saneamento. Em 2016, tinham 46,3% do total das dívidas das principais empresas do setor. Em 2019, esse percentual caiu para 39,3%. As condições de prazo, nível de participação, custo financeiro oferecidas por eles são as mais adequadas ao prazo de retorno (payback) dilatado e às altas externalidades sociais do saneamento, ainda que recentemente as taxas dos seus financiamentos venham convergindo com as de mercado.
Agências multilaterais, como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), International Finance Corporation (IFC) e Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), e bancos de desenvolvimento (BD) estrangeiros como KfW Bankengruppe (KfW) e Japan International Cooperation Agency (Jica)
No caso de agências multilaterais e BDs estrangeiros, embora o prazo e custo (juros) também tendam a ser adequados, há algumas características que limitam seu uso. Como em geral o financiamento se dá em moeda estrangeira, as empresas de saneamento têm que adotar mecanismos de proteção contra as flutuações cambiais, o que encarece a taxa inicialmente baixa ou pode resultar em aumentos bruscos dos estoques de dívida, em caso de desvalorização do real.
Recentemente, há casos de financiamentos realizados em moeda nacional, o que pode aumentar a participação dessas fontes futuramente.
Debêntures, incluindo as incentivadas
As debêntures aumentaram sua participação no total das fontes utilizadas pelas principais empresas do setor, passando de 23,1%, em 2016, para 27,9%, em 2019. Porém, seus recursos têm sido destinados principalmente para capital de giro, distribuição de dividendo para holding, no caso de sociedades de propósito específico (SPE), e investimentos de rápido retorno em intervenções pulverizadas e pequenas, que dificilmente são financiadas por bancos públicos em razão dos custos de transação. Recentemente, observou-se um aumento nas emissões de debêntures incentivadas – reguladas pela Lei 12.431/2011.
Apesar disso, o mercado de capitais ainda é uma fonte de financiamento relativamente incipiente no setor. De modo geral, as emissões ainda são concentradas em poucas empresas e o prazo médio dos títulos não é tão longo – de 2016 a 2019, esse prazo foi de 5,4 anos.
Títulos internacionais
Os títulos internacionais costumam ter prazos mais longos e juros mais baixos do que as emissões de títulos domésticos e têm a flexibilidade de não exigir uso associado a um projeto específico. Por outro lado, têm risco cambial associado às operações em moeda estrangeira e exigem que a empresa disponha de registros na agência responsável pelo mercado de capitais em que a emissão será realizada, além de classificações de risco internacionais. Isso acarreta maiores custos financeiros e de transação, tornando essa opção pouco utilizada no setor.
Outros instrumentos de crédito privados, como fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC), bancos privados e arrendamento mercantil
Os FIDCs são tipicamente uma opção de financiamento para empresas que têm classificação de risco pior do que a de seus recebíveis, o que estaria em linha com as características do setor. Ainda assim, é uma opção de financiamento pouco usada, provavelmente em virtude de seu custo elevado.
Outros instrumentos – como arrendamento mercantil e empréstimos em bancos comerciais privados ou públicos – costumam representar uma pequena parte do estoque de dívida das empresas de saneamento, sendo mais utilizados em momentos de necessidade de capital de giro, por exemplo.
Concessões de saneamento e novas necessidades de investimento
Nos últimos anos, o BNDES tem atuado na estruturação de projetos de concessão em saneamento, com foco em sustentabilidade financeira, divisão adequada de riscos e geração de benefícios sociais. Com isso, o Banco procura contribuir para atrair prestadores capacitados principalmente para as áreas de maior déficit de acesso e onde o investimento atual é insuficiente.
O estímulo às novas concessões, que vai além do programa do Banco, representa um movimento que pode somar investimentos expressivos aos que vêm sendo feitos pelos prestadores mais capacitados.
As concessões em estruturação exigem altos níveis de investimentos, concentrados em suas fases iniciais. São projetos com fluxo de caixa negativo nos anos iniciais, nos quais o retorno na forma de receitas costuma ocorrer entre o oitavo e o décimo ano. Dessa forma, ao contrário do que ocorre hoje com o financiamento das Cesbs e de concessões geridas por empresas privadas, esses projetos demandarão a combinação de diversas fontes de recursos para seu sucesso.
Como viabilizar novos investimentos em saneamento
Há poucas experiências de cofinanciamento em saneamento no Brasil. Desafios precisam ser superados para que mercado de capitais e bancos públicos, multilaterais e privados atuem conjuntamente, como já ocorre em outros setores de infraestrutura. Acordos entre credores e compartilhamento de garantias estão entre os temas que os financiadores deverão abordar de maneira cooperativa.
Nesse contexto, com relação às fontes de recursos disponíveis, é importante:
- Garantir a disponibilidade de fontes de longo prazo já existentes (instituições financeiras públicas, agências multilaterais e BDs estrangeiros), principalmente em moeda doméstica.
- Aprimorar as condições ofertadas por fontes que passaram a ter maior participação no financiamento do setor recentemente, como as debêntures.
- Adotar instrumentos de crédito ainda pouco utilizados pelo setor, a exemplo de garantias ofertadas por bancos públicos ou multilaterais e dos chamados “mini perms”, isto é, créditos de curto prazo para a fase de construção do projeto, que precisam ser refinanciados ao fim de seu termo, pela própria instituição que concedeu o crédito ou pelo mercado de capitais.
Esse texto é baseado no artigo O financiamento dos serviços de água e esgoto: análise do passado recente (2016-2019) e desafios da diversificação de fontes para chegar à universalização, dos autores Letícia Pimentel e Marcelo Miterhof, publicado no BNDES Setorial 53.
Leia o estudo completo para saber mais
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