Onde está a restrição de crédito no Brasil?
Uma questão que tem despertado o interesse dos economistas que investigam o funcionamento do mercado financeiro diz respeito ao tipo de empresa que teria mais dificuldade de acesso a crédito. O senso comum diria que são as empresas de menor porte, principalmente devido a falta de informação e alta inadimplência no segmento. Nesse sentido, seria plenamente justificável – do ponto de vista da eficiência econômica – priorizar as micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) como alvo das políticas públicas de concessão de crédito.
Mas como verificar, de forma analítica, se uma empresa é prejudicada por essa falha de mercado? A abordagem mais usada para identificar a restrição de crédito na literatura econômica é verificar se as empresas dependem de aumentos em seu fluxo de caixa para aumentar seus investimentos, uma vez que esses incrementos do investimento não seriam financiados por crédito. Portanto, a capacidade de gerar recursos, geralmente medida pela razão entre fluxo de caixa e ativo imobilizado, é considerada pela literatura econômica como um dos fatores importantes para identificar a restrição de crédito nas empresas. O resultado de tal metodologia, quando aplicado às empresas de outros países, tipicamente confirma o senso comum de que a restrição ao crédito é em geral inversamente proporcional ao tamanho da empresa.
Relação entre porte da empresa e acesso a crédito: o que dizem os estudos?
Terra (2003) foi a primeira autora a apresentar evidências de que as empresas brasileiras sofrem restrição de crédito. No entanto, seu artigo não mostrou que as MPMEs seriam mais impactadas por essa restrição do que as grandes, ao se considerar o período total analisado (1986-97), o que se verificou apenas ao restringir a análise aos últimos quatro anos (1994-97). Em um segundo estudo sobre o tema, Aldrighi e Bisinha (2010) corroboraram a existência da restrição de crédito para empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo, mas encontraram resultado oposto ao senso comum: quanto maior a empresa, maior era a restrição. Em suma, tudo parecia indicar a existência de mais um puzzle a ser decifrado pelos economistas brasileiros, ou em uma linguagem mais coloquial: uma nova jabuticaba econômica no Brasil.
Em 2018, Ambrozio et al. (2017) contribuíram para o debate ao analisar o assunto utilizando uma base de dados mais ampla, na qual a maior parte das empresas era de capital fechado, ao contrário dos dois estudos anteriores.
Ao fazer isso, conseguiram demonstrar de forma robusta que as empresas menores sofrem de fato mais restrição a crédito do que as grandes.
Em outras palavras, empresas maiores enfrentam menores obstáculos para angariar recursos visando financiar seus planos de investimento. O sucesso do estudo em atestar essa relação pode ser explicado pelo fato de que as diferenças entre pequenas e grandes empresas de capital aberto são mais tênues do que aquelas observadas quando se inclui também as de capital fechado na análise.
Adicionalmente, o estudo mostrou que algumas empresas não têm problemas no acesso ao crédito, mesmo no segmento de menor porte. Isso se verificou quando estavam presentes duas características: a capacidade exportadora e a presença no mercado de capitais. Com relação à última, o estudo considerou como de capital aberto as empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo. Já no que se refere à capacidade exportadora, baseou-se na existência de uma razão entre exportação e vendas acima da mediana das empresas exportadoras, ou seja, em um elevado coeficiente de exportação.
De forma geral, espera-se que essas duas características (capital aberto x fechado; alta x baixa razão entre exportação e vendas) sejam correlacionadas com a necessidade de crédito para financiamento de planos de investimentos.
Enquanto a presença no mercado de capitais pode ser considerada como uma solução para acesso a outras fontes de recursos no mercado doméstico (dispensando o crédito), a capacidade exportadora seria uma solução para captar fundos no mercado externo, por exemplo, com a obtenção de financiamento junto aos compradores.
Ademais, empresas que conseguem romper a barreira do acesso ao mercado de capitais ou a barreira do mercado externo de bens e serviços têm reputação suficiente para não depender apenas de seus próprios recursos para financiar os seus investimentos. Já as que não apresentam essas características não terão outra opção a não ser usar seus lucros retidos para financiar seus projetos – ou parte deles.
Que critérios adotar nas políticas públicas?
Os resultados obtidos permitem sugerir certas prescrições de política pública. Se, por um lado, reformas microeconômicas são importantes para destravar o mercado de crédito como um todo - e importantes avanços tem sido alcançados, a exemplo da expansão do crédito decorrente da Lei de Falências, registrada por Araújo e Funchal (2009) –, por outro, medidas ativas deveriam ser implementadas para alavancar a capacidade de financiamento das empresas que ainda têm acesso restrito ao crédito.
Como as empresas de capital aberto e aquelas de coeficiente de exportação elevado, de fato, não parecem sofrer dessa falha de mercado, uma via de atuação do governo seria implementar medidas de incentivo à abertura de capital e à inserção no mercado internacional. Todavia, essas duas possibilidades não são factíveis para toda empresa, visto que envolvem custos que não podem ser recuperados.
Nesse contexto, ações de política relevantes deveriam ter como foco aliviar restrições de crédito no segmento de MPMEs, mais afetado por essa falha de mercado.
Algumas ações já existem no Brasil e no mundo, como criação de fundos de investimento e de fundos garantidores de crédito.
Em resumo, em um ambiente econômico de intenso debate sobre como as políticas públicas poderiam atenuar a restrição de crédito do setor privado brasileiro, torna-se essencial estabelecer algum critério mensurável de forma a contribuir objetivamente para o debate. A razão entre fluxo de caixa e ativo imobilizado, utilizada pela literatura econômica, aparece como alternativa de um indicador de restrição de crédito capaz de identificar aquelas empresas com maiores dificuldades de obter crédito na economia brasileira, além da tradicional visão de que, só por ser MPME, a empresa é restrita ao crédito.
Referências
ALDRIGHI, D. M.; BISINHA, R. Restrição financeira em empresas com ações negociadas na Bovespa. 2010. Revista Brasileira de Economia 64 (1): 25–47.
AMBROZIO, A. M. et al. Credit scarcity in developing countries: an empirical investigation using Brazilian firm-level data. 2017. Economia 18 (1). Elsevier: 73–87.
ARAÚJO, A.; FUNCHAL, B. A nova lei de falências brasileira: primeiros impactos. 2009. Revista de Economia Política 29 (3): 191-212.
TERRA, M. C. Credit constraints in Brazilian firms : evidence from panel data. 2003. Revista Brasileira de Economia 57 (2): 443–64.
Filipe Lage de Sousa - economista do Departamento de Pesquisa Econômica da Área de Planejamento do BNDES e professor no departamento de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). PhD pela London School of Economics, com especialização em desenvolvimento do setor privado.
Antônio Marcos Ambrozio – economista do Departamento de Pesquisa Econômica da Área de Planejamento do BNDES, com doutorado pela PUC-RJ.
João Paulo Martin Faleiros – economista do Departamento de Modelagem da Área de Operações e Canais Digitais do BNDES e professor colaborador no curso de mestrado em economia da UFABC. É doutor em Teoria Econômica pela FEA-USP, com especialização em economia aplicada ao comércio internacional.
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