
Ha-Joon Chang: o que limita nossa compreensão (e ação) sobre as transformações atuais
Muito se fala sobre um mundo em rápida transformação e dominado pela crise: globalização e desglobalização, novas tecnologias emergentes (inteligência artificial, nanotecnologia, biotecnologia), economia do conhecimento e realinhamento geopolítico são algumas das mega tendências atuais. Argumenta-se que estamos vivendo uma era de “poli-crises” – crise climática, financeira, tensões políticas, crescente risco de pandemias – acontecimentos interligados e que se intensificam. Tomando um distanciamento histórico: será esse momento realmente tão particular?
Em sua palestra no evento States of the Future, Ha-Joon Chang, economista sul-coreano e professor da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, argumentou que o debate sobre o futuro do mundo está limitado por perspectivas enviesadas que não questionam o saber convencional e não fornecem uma abordagem alternativa para o enfrentamento das grandes questões do século XXI.
Foto: Rossana Fraga
Divulgação BNDES
Com exceção da crise ecológica (que vai além da crise climática), que, em sua perspectiva, é realmente nova historicamente e se aproxima de um ponto de não retorno, as demais são questões recorrentes no capitalismo. Isso não significa dizer que são pequenas – ou que não requerem respostas. O que o pesquisador defende é que se faz necessário um entendimento mais profundo do que se passa ao redor do mundo para que possamos questionar o status quo e construir ferramentas que nos permitam agir de forma efetiva globalmente.
Para Chang, superar essas limitações é imprescindível para construir novas formas de cooperação global, estabelecer intervenções Estatais efetivas em nível nacional e ações coletivas da sociedade civil para tratar dos desafios atuais de forma mais equilibrada e progressiva.
Veja os pontos principais da palestra de Ha-Joon Chang no evento States of the Future.
Precisamos conferir o ponto de vista por trás dos nomes, descrições e análises de um fenômeno
Chang aponta que a narrativa midiática em torno da crise atual, ou da “poli-crise”, que nos assola parte de uma perspectiva centrada no mundo Ocidental, além de carregar um viés de classe.
A abordagem da crise pela mídia, segundo o pesquisador, parece partir de uma percepção de que o mundo foi lançado repentinamente em um período de crises múltiplas e sobrepostas – que por vezes é descrito como tendo se iniciado com a crise financeira global de 2008 ou, em alguma medida, com a pandemia de Covid-19.
No entanto, Chang nos convida a pensar além, avaliando o contexto desse fenômeno e a origem dessa narrativa.
“Não me entendam errado. Não é que os problemas que assolam o mundo na atualidade e as mudanças que estão acontecendo não sejam importantes. Só quero dizer que precisamos entender a natureza desse fenômeno corretamente”.
“Pergunte a um empresário chinês ou vietnamita sobre a crise, e este te perguntará de volta: ‘Crise? Que crise?’” – explica Chang. “Financeiramente, desde a transição para o capitalismo, em 1979, a renda per capita da China foi multiplicada por oitenta. Da mesma forma, desde que fez sua transição, em 1986, a renda per capita do Vietnam aumentou 18 vezes”. Ou seja, para essas pessoas, financeiramente, a vida nunca esteve tão boa.
“Por outro lado, se você é um cidadão médio da maior parte dos países da África e do Oriente Médio, sua vida tem sido quase continuamente atormentada por uma ‘poli-crise’. Poderíamos dizer que essas pessoas têm vivido em uma ‘crise permanente” ou uma ‘perma-crise’” – afirma o estudioso.
De acordo com Chang, muitas das narrativas sobre “as crises” atuais assumem implícita e superficialmente que o contexto mundial estava mais ou menos bom, pelo menos nos países ricos, até a crise financeira de 2008. “No entanto, desde a ascensão do neoliberalismo nos anos 1980 até a crise financeira de 2008, muitas das pessoas mais pobres da maior parte dos países ricos já tinham sofrido estagnação de salário, aumento de dívidas, perda de direitos sociais e crescimento das desigualdades”. Portanto, a visão de crise que predomina hoje e remonta aos últimos 15 anos parte de uma visão de classe: da classe alta dos países ricos.
O professor dá ainda o exemplo da automação e da crescente preocupação da substituição de trabalho humano por inteligência artificial: “duzentos e cinquenta anos de contínua automação não nos levaram a uma sociedade sem empregos”. Bilhões de empregos foram eliminados, mas outros bilhões foram criados.
“Não é que não tenhamos que nos preocupar com empregos” – diz Chang, “Aqueles cujo trabalho é destruído pela automação sofrem imensamente e precisam receber apoio financeiro, treinamento, ajuda para sua recolocação no mercado de trabalho”. Porém, ele questiona se o destaque dado a essa questão não vem do fato de que a automação hoje afeta justamente o trabalho daqueles que escrevem sobre isso – jornalistas e economistas –, além de outros profissionais como médicos, advogados, contadores etc., o que só reforça o argumento do viés classista da narrativa atual.
“Essa preocupação com um mundo sem emprego é de uma perspectiva muito classista, isto é, da perspectiva de profissionais de colarinho branco, especialmente em países ricos. De fato, muitas das pessoas que hoje se preocupam com um mundo sem emprego são exatamente as mesmas que criticavam os trabalhadores ditos do chão de fábrica ou trabalhadores manuais (colarinhos azuis) por resistir à automação”.
Sempre que pensamos sobre grandes transformações econômicas e sociais, é preciso estar atento à perspectiva sob a qual ela está sendo considerada, definida e caracterizada.
Precisamos analisar o fundamento das transformações, em vez de nos concentramos na descrição superficial dos fenômenos
Narrativas e movimentos vistos hoje não são necessariamente o que parecem. É preciso olhar além da superfície.
Chang exemplifica a máxima com o confronto atual entre China e Estados Unidos e a pressão para que as nações escolham um lado nessa disputa diante de uma expectativa/temor de que as economias dos dois países vão romper em um futuro próximo.
“Mas, quando olhamos a realidade subjacente, sabemos que isso simplesmente não pode acontecer – a não ser no longo prazo. Sendo claro, esse confronto não é a Segunda Guerra Fria e nem os EUA nem a China têm condições de se isolar um do outro”. Diferentemente do passado, quando Estados Unidos e o Bloco Soviético não tinham praticamente relações econômicas, China e EUA são dois países interligados, seja do ponto de vista financeiro, seja do ponto de vista econômico.
A China possui 13% dos títulos americanos. Os EUA são o segundo maior parceiro comercial da China, e a China é o quarto maior parceiro comercial dos EUA. A China contribui de forma importante para a estabilidade americana dos preços. Se não houvesse um fluxo contínuo de bens chineses baratos e de boa qualidade, o modelo econômico americano não seria sustentável. Há questões, porém, que causam incertezas: “Em relação a guerra sobre chips, minha visão é a de que os EUA começaram muito tarde. Hoje a China é tecnologicamente muito próxima aos EUA.”
Voltando à área de automação, Chang relembra de quando em torno de 2016-2017 a mídia divulgou um movimento da Adidas de automatizar sua produção de tênis abrindo novas fábricas nos EUA e na Alemanha. Dois a três anos depois, a empresa fechou as mesmas fábricas discretamente, sem alarde: havia muita mão de obra barata e qualificada em países como China e Vietnã. “O fato de algo ser tecnologicamente viável não significa que faça sentido para o negócio”.
Em relação ao nosso entendimento do mundo, não devemos nunca considerar algo como inevitável
Ha-Joon Chang argumenta que há muitas coisas que podemos fazer por meio de políticas públicas, instituições e outras ações coletivas para transformar os resultados produzidos por forças econômicas e tecnológicas aparentemente imutáveis.
“Por exemplo, quando nos preocupamos com problemas de desigualdades nos países ricos, nos é dito que a desigualdade crescente é um resultado inevitável da globalização que favorece os capitalistas nos países ricos e os trabalhadores não qualificados nos países pobres. Mas isto é verdade?”
Chang aponta que, ao mesmo tempo em que a desigualdade cresceu significativamente na maior parte dos países ricos, não cresceu em todos. Em países como Canadá, França, Holanda e Suíça, a desigualdade permaneceu mais ou menos a mesma ou até caiu nos últimos 40-45 anos de globalização. “Não sou especialista nessas economias, mas isso mostra que, por meio de uma combinação de políticas distributivas e regulações de mercado, é possível neutralizar os efeitos de crescimento das desigualdades decorrentes da globalização”.
Um exemplo mais próximo. Chang compara a desigualdade no Brasil e na África do Sul. Quase idênticas em meados dos anos 1990 (com índice de Gini em torno de 0,6), a desigualdade brasileira é hoje 0,1 ponto mais baixa, enquanto a sul-africana subiu 0,03. Segundo Chang, as políticas públicas brasileiras a partir da década de 2000 e a falta de efetividade das políticas sul-africanas respondem pelo afastamento desses índices.
“Há muitas coisas que podem ser – e foram – feitas por meio de intervenções em políticas públicas de modo a reverter tendências supostamente inevitáveis. Quando algo descreve um fenômeno como inevitável, usualmente é porque essa pessoa está muito voluntariamente aceitando o status quo – ou aceitando uma dada distribuição de renda, riqueza e poder existentes, para colocar de outra forma.”
Assista à palestra na íntegra.
Conteúdos relacionados
Estudo do BNDES vê relação entre crescimento econômicos pós-crises e impulso do crédito bancário
André Roncaglia fala sobre os desafios para um novo modelo de desenvolvimento
O papel do Estado na promoção de um desenvolvimento mais sustentável e socialmente inclusivo