DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO SUSTENTÁVEL DA AMAZÔNIA AZUL: ENTREVISTA COM O PROFESSOR ALEXANDER TURRA
Se fosse um país, o oceano seria a sétima maior economia do mundo, segundo estimativa da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entre os países, o Brasil tem uma das maiores áreas marítimas, com cerca de 5,7 milhões de km², contemplando espaços marítimos e costeiros sob jurisdição brasileira. E 18% dos brasileiros moram na faixa litorânea. A economia brasileira depende da chamada “Amazônia Azul”, região rica em biodiversidade e recursos: 95% do comércio exterior é feito por meio do mar, que responde por 20% do PIB nacional e 25% dos empregos.
Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, o oceano é protagonista no ODS 14, “Vida na Água”, que carrega dez metas, sendo uma delas a “conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”. O mar é tão central que o período de 2021 a 2030 foi definido como a “Década do Oceano”.
Recentemente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou a iniciativa “BNDES Azul”, uma nova frente para desenvolver a economia azul brasileira com investimentos focados em pesquisas dos usos possíveis do mar, por meio do Planejamento Espacial Marinho (PEM), na descarbonização da frota naval e na infraestrutura portuária. Pesca, turismo, transporte marítimo, exploração de petróleo, bioenergia e preservação de sítios ambientais são apenas algumas das atividades a serem desenvolvidas.
Atualmente, o BNDES tem cerca de R$ 22 bilhões em carteira relacionados à economia azul. Do total, R$ 13,6 bi são para projetos de docagem, embarcações de apoio, estaleiros e navios petroleiros. Outros projetos, de transporte marítimo, portos, terminais e embarcações respondem por R$ 7,7 bi de apoio. Para o setor de turismo marinho e costeiro, o Banco tem em carteira R$ 296,7 mi e, para o apoio a projetos de recuperação de manguezais, são R$ 47 mi no âmbito da iniciativa Floresta Viva, em parceria com a Petrobras.
Para aprofundar a compreensão sobre a importância da economia azul para o desenvolvimento econômico sustentável, entrevistamos o Doutor Alexander Turra, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP) e coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano. Confira abaixo:
Você destaca que a Amazônia Azul é uma "preciosidade brasileira" agredida por diversos fatores. Quais desafios específicos a região enfrenta, considerando mudanças climáticas, pesca excessiva e poluição?
A Amazônia Azul é um grande território sob jurisdição nacional, o que significa que o Brasil pode explorar os seus recursos e aproveitar seus benefícios, mas tem a importante tarefa de zelar por ela. Ela é afetada por vetores diretos e indiretos. Os indiretos dizem respeito às decisões tomadas sobre o que fazer no Brasil, o que considera os seus dobramentos: por exemplo, se há uma tentativa de revogar uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente que impede a ocupação de áreas de restinga, haverá uma consequência muito clara para o processo de erosão costeira. As políticas públicas, as decisões políticas tomadas, elas vão ter uma influência mais ou menos severa sobre o que acontece na zona costeira e marinha. Além disso, toda a dinâmica demográfica e econômica do país traz pressões adicionais a determinadas regiões, gerando fontes locais de degradação. Dos vetores diretos, nós temos basicamente cinco, um deles é a poluição com suas mais variadas características, fontes e efeitos: estamos falando do óleo, do lixo no mar e do esgoto urbano. Temos que considerar também a pesca excessiva ou sobrepesca, que está associada ao conceito de pesca irregular, ilegal ou não reportada, que pode ser entendida de forma mais ampla como uso excessivo de recursos marinhos, não necessariamente só para alimentação, mas também para produção industrial. Também há a invasão de espécies exóticas, que são organismos que não ocorrem no Brasil, mas que chegam pelo transporte marítimo, por navios, desenvolvendo-se por aqui, levando a prejuízos ecológicos e econômicos. Temos a própria supressão ou fragmentação de ambientes marinhos, como os manguezais, que são muitas vezes cortados para dar lugar a obras e atividades que são ditas como de interesse público, mas não necessariamente são, como as fazendas de cultivo de camarão. E temos também as mudanças do clima, que interagem com todos os outros fenômenos citados anteriormente e que vão reduzir a saúde do ambiente marinho e da sua capacidade de lidar com agressões adicionais. No Brasil, a gente tem um avanço desses vetores, um agravamento dessas pressões que sinalizam ser hora de agir, mas na verdade essa hora já passou.
Tânia Rego / Agência Brasil
Muito se fala sobre a importância de integrar ações científicas voltadas ao mar para equilibrar desenvolvimento econômico, social e preservação. Quais medidas práticas podem ser adotadas para assegurar essa integração?
De fato, o conhecimento, de uma forma geral, é fundamental para que a gente evolua em nossa capacidade de promover a transição para um oceano sustentável. Ele inclui o conhecimento científico, mas também o conhecimento tradicional e dos povos originários, que agrega um entendimento bastante amplo da importância, do funcionamento e dos caminhos para fazer essa mudança. O que a gente precisa fazer para que isso realmente aconteça? Produzir mais conhecimento e compartilhar mais esse conhecimento. Boa parte do conhecimento que precisa ser produzido pode ser feito a partir da interação entre os diferentes conhecimentos já existentes na perspectiva de ressignificá-los dentro de contextos emergentes, como das mudanças do clima. Esse é o grande desafio que a gente tem: promover a geração de novos conhecimentos e retrabalhá-los considerando os diferentes sistemas de conhecimento e contextos existentes. E, para isso, a gente precisa ter espaços de diálogo bem estruturados e ter orientações das agências de fomento à pesquisa, direcionando não só recursos, mas trazendo princípios para que essa pesquisa possa ser feita dentro desse alinhamento, que é o que a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] hoje está começando a fazer com o lançamento do programa de Atlântico Sul e Antártica, que tem um viés muito forte para a pesquisa orientada à missão, que está alinhado com uma série de expectativas internacionais, especialmente consolidadas no âmbito da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável.
O ODS 14 da ONU é “Vida na Água”. Uma de suas metas é: “Até 2025, prevenir e reduzir significativamente a poluição marinha de todos os tipos, especialmente a advinda de atividades terrestres, incluindo detritos marinhos e a poluição por nutrientes”. A comunidade internacional tem condições de cumpri-la até 2025?
O ODS 14 tem dez metas. Uma delas foca especificamente nas fontes de contaminantes ou de poluentes que vão afetar a saúde do oceano, entendendo que boa parte das atividades humanas que afetam o oceano ocorrem no continente. Há uma conexão entre a terra e o mar que precisa ser compreendida e essa compreensão é a base da solução dessas questões. A gente tem que se valer de vários instrumentos para conseguir controlar isso, esses instrumentos existem, como avaliação de impacto ambiental e vários tratados internacionais para combater poluentes específicos. Agora, em 2024, finaliza-se o processo de construção do Tratado Internacional para Combate à Poluição Ambiental por Plásticos. Mas no Brasil, o ferramental para isso existe, especialmente, na Política Nacional de Resíduos Sólidos, na qual todos os instrumentos necessários para combater o problema do lixo no mar estão previstos. Mas o grande problema é que a gente tem aqui e em vários outros países, sobretudo no Sul Global, é uma dificuldade muito grande de implementar as políticas públicas. E aí que vem o papel muito importante dos órgãos de controle, dos órgãos de fomento, para direcionar a atuação dos órgãos competentes, sejam eles municipais, estaduais ou mesmo o governo federal, para implementar essas ações. A gente está falando, por exemplo, de aterros sanitários, mas amparados por um sistema de coleta seletiva que aproveite os resíduos recicláveis e aumente a capacidade da reciclagem, que tem um componente fundamental de geração e distribuição de renda. Ou mesmo a questão do saneamento, como potencial do esgoto doméstico de afetar as regiões marinhas, e até o licenciamento ambiental que precisa ser qualificado para que as fontes de poluição derivadas das indústrias, das atividades potencialmente poluidoras não ocorram. O que falta é a implementação, falta a vontade política. E é por isso que o G20 é uma plataforma importante para a agenda de oceano, o Brasil tem uma oportunidade gigantesca hoje enquanto presidente do G20 de trazer essa mensagem para os outros países, priorizando esses tipos de ações que são estratégicas para atingir a meta. Eu não tenho grandes expectativas que ela seja atingida em 2025, mas a gente tem em 2025 a Conferência do Oceano na França, e nela seria um momento importante para ter essa pactuação dos diferentes países. Para efetivamente trabalhar no sentido de reduzir essas fontes de poluição e, com isso, melhorar a saúde do ambiente marinho.
Nós estamos na Década da Ciência Oceânica, como proposto pela ONU. Como o Brasil avançou nos últimos três anos para a preservação e exploração sustentável dos oceanos?
O Brasil é um grande protagonista na discussão, ele criou o primeiro Comitê Nacional da Década do Oceano. Nós temos uma influência e uma inserção muito grande na esfera internacional. O problema é que isso não necessariamente tem se revertido em ações de preservação efetivas. E esse é o passo que a gente tem que dar. Algumas oportunidades interessantes do Brasil em diálogo com outros países que protagonizam a agenda de oceano, como a França ou a Noruega, é trazer para cá esse destaque. 2025 é o ano binacional Brasil e França, e seria muito interessante que eles estabelecessem esse ano como o ano do oceano, porque a França já vai ter isso, por conta da Conferência do Oceano que vai ser realizada lá em junho de 2025. Isso pode trazer para o Brasil uma energia e um foco adicional para fazer com que os movimentos aconteçam: isso depende de vontade política e depende também de investimento. E, nesse sentido, a gente tem que buscar formas alternativas de financiar essa transição, entendendo como que a gente cria oportunidades novas de uso dos benefícios associados ao ambiente marinho, e aí não é só explorar óleo e gás ou minério no fundo do mar. A gente está falando de abordagens inovadoras, pautadas por serviços, tecnologia, iniciativas arrojadas que vão demandar um esforço muito grande de inovação e empreendedorismo que o Brasil tem tudo para poder escalar.
Reprodução: Prefeitura de Cananéia
Os projetos do Planejamento Espacial Marinho – PEM Sul e PEM Sudeste – visam, entre outras coisas, mapear as potencialidades econômicas dessas zonas costeiras. Como esses projetos podem conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental na Amazônia Azul?
Planejamento Espacial Marinho é um instrumento de planejamento do ambiente marinho organizado pelo Unesco e disseminado mundialmente para que os países consigam olhar estrategicamente os seus “maretórios”, os seus territórios marinhos. Isso significa olhar as potencialidades, as vulnerabilidades e pensar de forma sistêmica como se aproveitar dos recursos e dos serviços ecossistêmicos que esses ambientes oferecem. E como fazer isso? A gente tem que entender que para esses benefícios ocorrerem o ambiente tem que funcionar adequadamente. Essa economia sustentável do oceano é pautada por três pilares, segundo o Painel de Alto Nível para uma Economia Sustentável do Mar, coordenado pela Noruega, que são a proteção efetiva, a produção sustentável e a prosperidade equitativa. A gente está falando de uma visão de mar, de uma economia do mar que esteja dialogando com a preservação do meio ambiente e com a prosperidade das pessoas, ou seja, distribuição de renda. Não necessariamente a gente está falando de atividades econômicas que concentram renda, e sim que capilarizam o bem-estar. Uma dessas é o próprio turismo, que depende de um ambiente saudável. Outra é a pesca de pequena escala ou aquicultura. E temos várias outras possibilidades de caminhar para abordagens biotecnológicas e outros caminhos ainda não desenvolvidos no país. O PEM é um instrumento importante para se estruturar essa visão de futuro, e para isso acontecer ele tem que ser extremamente transparente e aberto ao diálogo, considerando os diferentes interesses que existem e não desconsiderar a importância da conservação. A Convenção da Diversidade Biológica trabalha hoje de forma ampla o conceito de 30 x 30, que seria ter 30% de áreas marinhas protegidas efetivamente implementadas até 2030. O Brasil tem 26%, mas essas áreas não são necessariamente efetivamente implementadas, representativas, nem adequadamente conectadas. A gente tem um desafio gigantesco para avançar nessa agenda e 30% talvez seja pouco para o Brasil. E nesse sentido a gente vai precisar entender que no PEM as áreas marinhas protegidas não podem ser alocadas em uma região onde nenhuma outra atividade quer. Elas precisam ser pensadas de modo adequado e, eventualmente, vão ter que ser colocadas em áreas onde há jazidas de determinados tipos de minério, por exemplo, ou que são importantes para pesca, mas que, pelo fato de existir uma área marinha protegida, a pesca vai poder ser ampliada porque os estoques vão poder se recuperar. Então, esse é o grande dilema que a gente tem que superar na construção do PEM.
Diante da importância estratégica e científica da Amazônia Azul, como o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz) da Marinha, que constitui um conjunto de equipamentos e sistemas para colher informações nessa faixa oceânica e busca compartilhá-las com órgãos federais, contribui para garantir a soberania do Brasil nessa faixa oceânica?
Sem informação, sem acompanhar o que está acontecendo com o ambiente marinho, a gente não tem condições de fazer uma gestão apropriada desses espaços, dos seus recursos e dos benefícios. SisGAAz é um elemento importante que se soma a outras iniciativas que já existem no Brasil, como o Braço Nacional do Sistema de Observação do Oceano, que a Comissão Oceanográfica Intergovernamental estabelece. O nome é GOOS, que é o Global Ocean Observation System. A gente precisa de um grande sistema interligado de ferramentas e estratégias de monitoramento e de vigilância do ambiente marinho, pois uma coisa está atrelada à outra, porque uma informação sobre, por exemplo, a presença de uma mancha de óleo vai indicar para a gente uma atividade irregular sendo realizada, ainda que fora das áreas jurisdicionais brasileiras; vai indicar uma fonte de poluição que precisa ser combatida. Esse é um grande trunfo que a gente precisa valorizar no país e amplificar. Não dá para a gente ter o PEM sem necessariamente ter acoplado um sistema de vigilância que cubra toda a Amazônia Azul e um sistema de monitoramento ambiental, oceanográfico, que indique para a gente como esse ambiente está. Essa visão de futuro corresponde a um desafio importante que o BNDES, como um banco de desenvolvimento de visão abrangente, ele poderia encampar essa demanda no sentido de contribuir, por exemplo, para o Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas, que é uma organização social vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação, para que ele possa ter a estrutura e os recursos necessários para ter essa condição de gerar, organizar e disseminar os dados, para que eles possam ser usados para as mais variadas finalidades.
Reprodução: Marinha do Brasil
Você já afirmou que cerca de 30% da população brasileira jamais foi ao mar. Por que se esforçar para conectar os brasileiros ao mar?
O Brasil é uma nação marítima. Ele tem uma dependência muito grande em relação ao ambiente marinho, tanto direta quanto indiretamente. A pujança do agro depende da água que evapora do oceano e que vai chover em alguns locais. Se nós mudamos os padrões de circulação do oceano, essa chuva vai mudar seu padrão também. A roupa que muitas pessoas vestem aqui no Brasil vem por navios, ou seja, dependem do transporte marítimo. A gente tem aí uma série de conexões que são importantes, e que não é só o fato de a pessoa ir à praia que ajuda a compreender isso. Mas tem toda uma questão simbólica, que são benefícios imateriais não traduzíveis em dinheiro, como a própria sensação de você se banhar no mar, de você sentir o cheiro do mar, de ter toda a espiritualidade associada ao ambiente marinho, a capacidade e a potencialidade de aprendizado, de geração de ciência, tudo isso é difícil de você monetizar. Esses são elementos importantes que precisam ser colocados nessa conta, e isso passa um pouco por esse contato. É fundamental que a gente consega fazer com que o oceano chegue até as pessoas. Isso não significa necessariamente levar todo mundo para o mar, mas trazer oportunidades para que elas possam se encantar com o ambiente, entender a sua importância e ter atitudes que vão ajudar a zelar por ele. Mas não de uma forma ultra idealista, e sim de forma muito pragmática, porque o mar está doente, porque é a sociedade que está doente. O foco é ter municípios, bairros, comunidades em que as pessoas estão vivendo com dignidade, com qualidade de vida, isso significa coleta e tratamento de esgoto, com destinação final de resíduos. E se isso acontece, no mar vai acontecer também, uma vez que essa conexão do continente com o oceano é muito forte, então temos que entender essa conexão e que não faz sentido a gente cuidar do mar sem cuidar da sociedade. O que acontece no mar é um grande sintoma do que está acontecendo na sociedade, do nosso modo insustentável de viver, e esse é um ponto que a gente precisa transformar. Trabalhar, por exemplo, no financiamento de atividades em terra que vão ajudar a ir menos poluição para o mar. Isso é uma forma, por exemplo, do BNDES atuar na economia azul, o que fará uma grande diferença de forma duradoura.
Alexander Turra é professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP) e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. É biólogo com mestrado e doutorado em ecologia pela Universidade Estadual de Campinas com atuação voltada para o exercício da pesquisa interdisciplinar e integrada e para a aproximação entre ciência e tomada de decisão e entre o oceano e a sociedade.
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