Como financiar o grande impulso para sustentabilidade? Entrevista com Flávia Moraes e Gabriel Aidar
No seminário Financiamento para o grande impulso para a sustentabilidade, realizado nesta segunda, dia 5 de junho, especialistas discutem caminhos e estratégias para destravar a transição social e ecológica no Brasil e na América Latina.
No evento, promovido pelo BNDES em parceria com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e a Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES), foram apresentados os principais pontos do relatório “Financiando o Big Push: caminhos para destravar a transição social e ecológica no Brasil”.
Para saber mais detalhes sobre o trabalho, publicado pela Cepal, entrevistamos os economistas e autores do relatório Gabriel Aidar e Flávia Moraes. Na conversa, eles comentam como esse tipo de estratégia pode ser implementada no Brasil e apontam formas de garantir o financiamento dessa ampla estratégia de investimentos verdes.
ENTREVISTA
Considerando o tamanho da redução de emissões necessária para conter o aquecimento global nos próximos anos (corte de 45% até 2030 e neutralidade em 2050), no estudo “Financiando o Big Push: caminhos para destravar a transição social e ecológica no Brasil”, vocês argumentam que a precificação de carbono não é suficiente para lidar com esse desafio. Quais são as limitações do mercado de carbono e que outras estratégias podem ser adotadas, especialmente pelos países em desenvolvimento?
Flávia Moraes: O mercado de carbono tem na sua base entender as mudanças climáticas como uma falha de mercado. Por isso, ele é um mecanismo que adota única e exclusivamente um instrumento para influenciar as transformações necessárias na economia para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Esse instrumento é a precificação das emissões. O que apontamos como limite é que não é possível garantir que esse mecanismo de preço vai funcionar. Isso porque não conseguimos garantir que as transformações promovidas por esse mercado serão suficientes tanto para reduzir as emissões no grau necessário quanto para que esse processo não produza desigualdades ainda maiores do que as existentes. Na prática, esse mecanismo não tem se mostrado eficiente no grau necessário, inclusive para redirecionar os investimentos para setores menos poluidores e que reduzem as emissões de GEEs.
Em relação às estratégias, o big push vem propondo isso. E cabe ressaltar que não significa que o mercado de carbono não possa ser utilizado como instrumento, mas que ele não é o único, nem o melhor. O big push considera justamente que é necessária uma série de mecanismos e instrumentos que devem ser coordenados pelas políticas públicas, pelo governo, para que em conjunto possam fazer com que as transformações aconteçam na direção e no grau adequados, sem promover a desigualdade. Posso citar como possíveis medidas, além do mercado de carbono, medidas regulatórias, investimento público, reformas tributárias, estímulo ao investimento privado. E tudo isso sendo pensado para que se atinja esse objetivo comum. Os bancos de desenvolvimento, como o BNDES, são também essenciais nesse conjunto de instrumentos que devem ser pensados na coordenação.
Gabriel Aidar: O estudo não tenta descartar a existência do mercado de carbono, da tributação de carbono ou da questão de cotas e mercado voluntário de carbono. Ele aponta somente sua limitação, dada a urgência climática.
Sabemos, pelos números da ONU, que é preciso ter uma redução de cerca de 45% das emissões nos próximos oito anos para que a gente consiga ficar no limite do aquecimento de 1,5º C, e o mercado de carbono tem primeiro uma limitação de tamanho. Hoje, 4% das emissões estão cobertas por algum instrumento específico de precificação de carbono, seja de tributação, mercado voluntário, cota. O Banco Mundial acompanha esses instrumentos.
Uma segunda limitação quantitativa são estudos econométricos que mostram que a precificação de carbono – cerca de US$ 50 a tCO2e – tem sido responsável por reduzir até no máximo 2% das emissões por ano nas regiões adotadas. Ou seja, muito distante da necessidade existente.
Uma outra dimensão dessa limitação do mercado de carbono, aí muito associada a países de renda mais baixa, como Brasil, mas não só, é que a transição climática e a necessidade de mudança no padrão de desenvolvimento que enseja a transição climática muitas vezes têm consequências sociais importantes. Então, por exemplo, a migração do combustível fóssil para outras formas de combustíveis ainda é muito cara hoje. Uma transição elétrica para mobilidade urbana não necessariamente consegue reduzir custos em relação ao fóssil. Da mesma forma, se você quiser tributar carbono para evitar escolhas de métodos carbono-intensivos, você também pode estar encarecendo o produto final ou a prestação de serviço, ou seja, isso tem impacto em renda real.
Quando falamos que a precificação de carbono não pode andar sozinha é porque a transição climática precisa de mecanismos de compensação que o mercado sozinho não vai resolver. Será necessária uma coordenação de investimentos públicos, de transferências, e uma coordenação puxada pelo Estado. Daí a necessidade de o Estado coordenar um grande impulso para a sustentabilidade, justamente para mudar o estilo de desenvolvimento, mudar o modo de vida das pessoas. Vamos precisar de um grande bloco de investimentos públicos e privados para realizar essa transição.
O Brasil hoje é o quarto maior emissor per capita mundial de GEEs, mas tem um padrão de emissões distinto das nações desenvolvidas, já que suas emissões estão relacionadas principalmente a mudanças no uso da terra. Como isso deve ser levado em conta numa política de big push ambiental construída especificamente para o país?
Flávia Moraes: Eu entendo que esse padrão de emissões está intrinsecamente associado à própria estrutura produtiva do Brasil. Por isso, é essencial que essa visão do padrão de emissões brasileiro seja considerada na construção da estratégia de big push. Justamente para que se tenha um olhar para os principais causadores das emissões e se busque, por meio da estratégia, transformar essa produção e/ou consumo que está gerando a emissão.
A construção de uma estratégia por meio de políticas coordenadas, como sugere o big push, deve ter como objetivo transformar a estrutura produtiva brasileira de forma a reduzir a participação de setores e técnicas produtivas intensivas em GEEs e, ao mesmo tempo, promover setores menos intensivos em emissões. A premissa essencial do big push é que a coordenação deve atrelar a transição ambiental à promoção do desenvolvimento o país, gerando emprego, renda e redução de desigualdades. É essencial que isso seja levado em conta na construção da estratégia, de forma que sejam identificados os setores responsáveis pelas emissões e possam se promover transformações tanto na forma de produzir desses setores quanto na configuração da estrutura produtiva do país, ou seja, dando maior relevância a setores menos intensivos em emissões.
Gabriel Aidar: Essa coordenação de investimentos que promove o grande salto é fundamental como uma janela de oportunidade para países em desenvolvimento entrarem nesse novo padrão de desenvolvimento que vai implicar mudanças na matriz energética, no modelo de mobilidade e logística, na rastreabilidade dos produtos verdes que têm impacto em emissões. A importância do grande impulso e da coordenação de um grande bloco de investimento que promova essas mudanças é central para o sucesso. Esse financiamento vem na estrutura de fundos, mas poderia vir na forma de captações internacionais, de uma reforma tributária verde, numa política fiscal com priorização de gastos para a transição climática e no direcionamento de fundings já existentes. Por exemplo, nos recursos já direcionados para o crédito rural, é possível ter um enfoque cada vez maior em técnicas de agricultura de baixo carbono e precisão para o campo ou em evitar o incentivo à agropecuária em áreas desmatadas.
Qual a importância de uma coordenação específica e de mecanismos de accountability para o sucesso do big push ambiental?
Flávia Moraes: Reforçando o que já disse anteriormente, a coordenação das políticas públicas no big push vai permitir que os investimentos necessários sejam orientados para setores capazes de transformar a forma de produzir e o consumo, de maneira que a redução de emissões de GEEs ocorra na medida necessária. É por meio da coordenação também que a gente garante que esse processo seja feito de uma forma justa, buscando reduzir as desigualdades existentes, e não ampliá-las.
Quanto aos mecanismos de accountability, eles são essenciais para o acompanhamento do processo. Essa estratégia é um planejamento de longo prazo e esses mecanismos vão garantir que você tenha, ao longo do processo, indicadores que mostrem se os objetivos estão sendo alcançados ou não, principalmente na magnitude necessária. Então, eles vão permitir acompanhar e redirecionar a estratégia, fazendo ajustes e readequações das políticas para que os objetivos sejam alcançados.
Gabriel Aidar: A accountability é importantíssima por uma questão de transparência. Esse arcabouço demanda a padronização de uma taxonomia dos investimentos para redução de emissões e que esses investimentos tragam adicionalidade. Um dos problemas apontados muitas vezes em um mercado ASG é a falta de padronização e regulamentação, que faz com que não se saiba, por exemplo, se aquele relatório de dada empresa traz uma redução adicional de emissões ou se já é prática do business as usual. Ou seja, não apresenta uma contribuição decisiva para uma mudança no padrão de negócios da empresa visando zerar emissões.
A existência de sistema ou um arcabouço – certificação nacional, por exemplo – para esses projetos e investimentos voltados à redução de emissões é importante para que se tenha a segurança de estar, de fato, contribuindo em termos líquidos para a redução de emissão. É importante para que, no contexto de uma regra fiscal verde, por exemplo, os gastos sejam de fato direcionados à Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) brasileira ou que captações via títulos verdes contem com uma taxonomia definida.
Para além dos instrumentos e mecanismos de financiamento que possam ser mobilizados, que caminhos identifica atualmente para garantir os recursos necessários à transição para economia verde no Brasil?
Gabriel Aidar: Você tem por exemplo funding de crédito direcionado para agricultura que poderia ser usado para nortear a descarbonização no âmbito do plano Safra. Você poderia ter um foco também dos recursos direcionados para o setor imobiliário com foco na contenção de moradias em zonas vulneráveis, do ponto de vista de risco climático, de deslocamento de populações.
O BNDES é responsável pela gestão de fundos – como Fundo Amazônia e Fundo Clima – que já contribuem para ações de mitigação e adaptação à mudança do clima. Como você avalia que seria possível potencializar o impacto desses fundos nos próximos anos? De que outros instrumentos o Banco pode lançar mão com esse objetivo?
Gabriel Aidar: O Banco é o principal gestor dos fundos ambientais e climáticos de que o Brasil dispõe atualmente, que são o Fundo Amazônia e o Fundo Clima. Em primeiro lugar, o descongelamento do Fundo Amazônia esse ano já é um grande avanço, considerando que ele tem um papel enorme no financiamento de ações que evitam emissões relacionadas ao desmatamento, mas também pode auxiliar no desenvolvimento com floresta em pé – ou seja, em ações de desenvolvimento socioeconômico para a população da região associados à manutenção da floresta em pé. A fonte de recursos do Fundo Amazônia é quase totalmente de captações e ele é um grande chamariz para nossa captação de recursos internacionais, de países e organismos multilaterais. Acho que as recentes contribuições decorrentes de missões oficiais do governo brasileiro têm sido um exemplo desse potencial.
O Fundo Clima tem um desafio de se consolidar como instrumento de maior impacto em termos de tamanho. Hoje, ele tem uma carteira de pouco mais de R$ 2 bilhões. Criado como principal fundo da transição climática no Brasil, ele tem potencial para crescer e aumentar seu impacto. Esse fundo também pode captar internacionalmente e receber doações, lembrando sempre que é um fundo de natureza orçamentária do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Então qualquer recurso entra via orçamento do MMA, mas ele pode sim se beneficiar dessas captações. Também pode ser o fundo para aplicação dos recursos captados com títulos verdes. O BNDES hoje já dispõe de uma taxonomia verde que pode lastrear operações que o Banco faça para aplicação de recursos, por exemplo, oriundos de uma emissão de títulos verdes do Tesouro.
O Fundo Clima pode avançar ainda em relação à comunicação com a sociedade, como o Fundo Amazônia já faz, apresentando seus impactos e suas contribuições. Pode ter uma contribuição decisiva para a NDC brasileira, mas precisa aumentar o seu tamanho. Isso é uma discussão que o BNDES tem junto ao MMA, ao Ministério da Fazenda e ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Importante salientar que o estudo não aprofunda instrumentos do BNDES, então aqui estou registrando uma visão do Banco que não consta no estudo. O estudo tem medidas de natureza macroeconômica mais gerais, e algumas possíveis atuações em termos de bancos de desenvolvimento, mas não exclusivamente do BNDES.
Os conteúdos apresentados em entrevistas e artigos assinados não refletem, necessariamente, a visão do BNDES.
Gabriel Aidar é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com doutorado sanduíche no Instituto de Estudos da América Latina da Universidade de Columbia, em Nova York, EUA. É superintendente da Área de Planejamento Estratégico do BNDES.
Flávia Moraes e Silva é mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em finanças verdes e financiamento de desenvolvimento sustentável.
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