O papel do Estado na promoção de um desenvolvimento mais sustentável e socialmente inclusivo
Vivemos um momento de transformações rápidas e complexas – avanços tecnológicos, pandemias, mudanças climáticas etc. –, em que várias mudanças sistêmicas e interconectadas impactam profundamente o desenho e o funcionamento de nossa sociedade.
O evento States of the Future, realizado entre 22 e 26 de julho, no Rio de Janeiro, em paralelo ao G20, reuniu diversos atores globais, entre governos, academia, socidade civil, think tanks, setor privado e organismos internacionais, para refletir sobre o papel do Estado em direção a um modelo de desenvolvimento mais sustentável e socialmente justo.
Nesse contexto, o Blog do desenvolvimento convidou alguns especialistas a contribuir com sua visão.
Nosso primeiro convidado é Richard Kozul-Wright, diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, Kozul-Wright é conhecido por suas contribuições para o debate econômico global e seu compromisso com a construção de um desenvolvimento inclusivo e sustentável.
Foto: Rossana Fraga
Divulgação BNDES
Veja abaixo sua resposta.
Qual é o maior desafio, atualmente, para as estruturas do Estado na promoção de um modelo de desenvolvimento mais sustentável e socialmente inclusivo?
[Tradução livre]
por Richard Kozul-Wright
Existem vários desafios envolvendo um modelo de desenvolvimento mais sustentável e inclusivo, mas é de fundamental importância encontrar a narrativa política certa para combater um mundo de concentração extrema de riqueza privada e miséria pública endêmica.
A escala, a complexidade e a urgência do desafio do investimento para enfrentar as múltiplas e interligadas crises da atualidade, comuns aos países desenvolvidos e em desenvolvimento, são amplamente compreendidas. O mesmo acontece com o papel central do Estado na mobilização e coordenação dos recursos financeiros e produtivos necessários, pelo menos para os formuladores de políticas públicas progressistas.
Diferentemente de uma geração anterior de formuladores de políticas públicas que viam os mercados como espaços inerentemente políticos, suscetíveis a pressões polarizadoras e impulsos destrutivos, as políticas públicas foram moldadas ao longo das últimas décadas pela ideia de que a ordem de mercado é a principal (e em algumas interpretações, a única) fonte de criação de riqueza, cujo funcionamento eficiente depende de sua vacinação contra interferências burocráticas indevidas e supervisão democrática. As políticas públicas caíram na armadilha fatalista de que “não existe alternativa” a um conjunto muito restrito de medidas econômicas para libertar e proteger o mercado, ou foram reduzidas a uma narrativa inócua sobre eliminar ou restringir significativamente o risco do investimento privado, parcerias público-privadas e corretagem de informações em um mundo que sistematicamente subinvestiu em bens públicos e deixou bolsões da sociedade à deriva em mares econômicos turbulentos. O resultado tem sido uma erosão constante de investimentos, capacidades e instituições do setor público necessários para impulsionar ativamente os resultados socioeconômicos numa direção mais sustentável e inclusiva.
Este Zeitgeist* neoliberal revelou-se notavelmente resiliente face a múltiplos choques, incluindo a crise financeira global de 2008, e é ainda mais surpreendente considerando o peso das evidências que acompanham o impacto adverso dos mercados hiperglobalizados e do capitalismo “rent-seeking” na inovação, no investimento e bem-estar social. Muitas formas de “rent-seeking” corporativo dependem, por meio de acesso privilegiado a influência política e proteções legais, de uma relação simbiótica com as instituições estatais, perpetuando o que tem sido descrito como um “círculo vicioso Medici”** que liga a acumulação de riqueza ao poder político.
É necessária uma nova narrativa, uma visão entusiasmada, para enfrentar as profundas assimetrias de poder construídas em torno do capitalismo rentista e do Estado “predador”, que possa responder às ansiedades de um eleitorado desiludido e de círculos eleitorais fragmentados que precisam de uma voz coletiva e mais forte. Isto inclui cidadãos e cidadãs mais jovens, cada vez mais alienados e temerosos de que o seu futuro seja marcado por empregos insatisfatórios e por uma catástrofe climática.
Qualquer narrativa desse tipo precisa reconhecer que os salários não são simplesmente um custo de produção, cujo preço deve ser deixado a cargo de mercados flexíveis. Os salários não são apenas uma fonte crítica de demanda; o aumento dos salários também pode estimular a produtividade, uma vez que as empresas são forçadas a investir os seus lucros para competir de forma eficaz. Mas bons salários dependem, em última análise, de bons empregos e, portanto, da disseminação de oportunidades produtivas numa vasta gama de atividades econômicas. Isto precisa estar articulado com políticas industriais direcionadas e seletivas, que procurem mudar a estrutura de produção no sentido da geração de emprego e de novas fontes de crescimento e, de forma crítica, com uma dimensão verde.
Controlar o rentismo terá de ser um segundo alicerce de qualquer agenda de política pública renovada. Domar as instituições financeiras, inclusive por meio de uma regulamentação nacional e internacional mais forte, e revigorar os bancos públicos pode impulsionar o investimento e atrair capital privado menos especulativo. De um modo mais geral, são necessárias medidas para reduzir práticas comerciais restritivas, incluindo a política de concorrência, que deve ser concebida tendo em mente objetivos distributivos explícitos.
Finalmente, para além da reconstrução de instituições públicas eficazes e de um forte contrato social nacional, o reposicionamento de uma narrativa progressista também precisará, e de forma crítica, galvanizar novas alianças internacionais para desafiar aqueles que estão alinhados com interesses financeiros e empresariais descomprometidos.
Notas da tradução:
* termo alemão que significa “o espírito da época”.
** termo inglês que descreve quando um agente privado busca garantir seus interesses econômicos manipulando o ambiente.
*** referência à família Médici, uma dinastia política de banqueiros italianos.
[Resposta original]
What is the biggest current challenge for State structures in promoting a more sustainable and socially inclusive development model?
There are multiple challenges facing a more sustainable and inclusive development model but of critical importance is finding the right political narrative to counter a world of extreme private wealth and endemic public squalor.
The scale, complexity and urgency of the investment challenge to address todays’ multiple and interconnected crises, common to both developed and developing countries, is broadly understood. So too, at least for progressive policy makers, is the central role of the state in mobilizing and coordinating the required financial and productive resources.
Unlike a previous generation of policy makers who saw markets as inherently political spaces prone to polarizing pressures and destructive impulses, public policy has been shaped over the last several decades by the idea that the market order is the paramount (and on some interpretations the only) source of wealth creation whose efficient operation depends on inoculating it against undue bureaucratic interference and democratic oversight. Public policy has fallen into the fatalistic trap of “there is no alternative” to a very narrow set of economic measures to free and protect the market or has been reduced to anodyne talk of derisking private investment, public-private partnerships and information brokering in a world that has systematically underinvested in public goods and cut large pockets of society adrift in turbulent economic seas. The result has been a steady erosion of public sector investments, capabilities and institutions needed to actively push socio-economic outcomes in a more sustainable and inclusive direction.
This neo-liberal zeitgast has proved remarkably resilient in the face of multiple shocks, including the 2008 global financial crisis, and is all the more surprising considering the weight of evidence tracking the adverse impact of hyperglobalised markets and rent-seeking capitalism on innovation, investment and social well-being.
Many forms of corporate rent-seeking depend, through privileged access to political leverage and legal protections, on a symbiotic relation to state institutions perpetuating what has been described as a “Medici vicious circle” linking wealth accumulation to political power.
A new narrative, an animating vision, is needed to tackle the deep asymmetries of power that have built around rentier capitalism and the “predator” state and that can speak to the anxieties of a disillusioned electorate and fragmented constituencies in need of a stronger and more collective voice. This includes an increasingly alienated younger citizenry fearful that their future will be one of unfulfilling jobs and climate catastrophe.
Any such narrative must recognize that wages are not simply a cost of production whose price should be left to flexible markets. Not only are wages a critical source of demand, rising wages can also stimulate productivity as firms are forced to invest their profits to compete effectively. But good wages ultimately depend on good jobs, and therefore on the dissemination of productive opportunities across a broad range of economic activities. This hinges on targeted and selective industrial policies that seek to shift the production structure towards employment generation and new sources of growth, and critically with a green dimension.
Reining in rentierism will have to be a second building block of any renewed public policy agenda. Taming financial institutions, including through stronger regulation at the national and international level, and reinvigorating public banks can boost investment and crowd-in less speculative private capital. Measures are more generally needed to curtail restrictive business practices, including competition policy which should be designed with explicit distributional objectives in mind.
Finally, beyond the rebuilding of effective public institutions and a strong social contract at the domestic level, repositioning a progressive narrative will also, and critically, need to galvanize new international alliances to challenge those aligned with footloose financial and corporate interests.
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